A pesquisa sociológica no mundo real: problemas, armadilhas, dilemas
Sociologia

A pesquisa sociológica no mundo real: problemas, armadilhas, dilemas


A pesquisa no mundo real: problemas, armadilhas, dilemas[1]

Qualquer um que já tenha executado uma pesquisa sociológica na fonte pode atestar o fato de que a pesquisa no ?mundo real? é bastante diferente dos métodos de pesquisa descritos em um livro texto! Ao iniciar um estudo, o pesquisador pode constatar que os instrumentos de pesquisa originalmente escolhidos acabam tendo um valor limitado para o tópico em estudo. Em outros casos, pode haver dificuldades imprevistas no acesso a determinada população, ou na elaboração de um questionário viável para o levantamento. A pesquisa sociológica exige certa flexibilidade; não é incomum que vários métodos sejam combinados em uma única pesquisa, na qual cada um completa e controla os demais em um processo conhecido como triangulação.
Examinando mais uma vez o estudo de Mitchell Duneier sobre a sociologia da vida urbana, sua investigação a respeito dos vendedores de rua e dos mendigos na Cidade de Nova York (1999), podemos perceber quais os desafios encontrados ao iniciarmos e executarmos uma pesquisa sociológica concreta.
Uma investigação da raça e da pobreza nos espaços urbanos

Na década de 1950, o Greenwich Village foi tema de um estudo sociológico clássico realizado por Jane Jacobs (1961) sobre a natureza da vida urbana. O bairro serviu como um laboratório natural para a compreensão do importante papel das interações cotidianas nas calçadas em unir a vida da comunidade e tornar possível que estranhos vivam bem próximos uns dos outros.
Quatro décadas depois, Mitchell Duneier ficou curioso em saber como a natureza da vida nas calçadas do Greenwich Village havia mudado desde a época do estudo de Jacob. O bairro ainda conserva seu caráter boêmio, mas contava com uma nova população. Um grupo de homens pobres, negros, predominantemente sem-teto começara a ganhar a vida nas ruas do bairro. Como vimos, alguns trabalhavam como vendedores de rua, vendendo livros e revistas nas calçadas; outros vendiam artigos encontrados nas lixeiras da vizinhança. E outros ainda eram mendigos, que pediam trocados de quem passasse na rua.
Como um sociólogo põe-se a ?estudar? o conteúdo da vida nas ruas? A primeira abordagem da pesquisa de Duneier ocorreu através de um contato pessoal com um dos vendedores de livros, chamado Hakim Hasan. Duneier era um cliente regular de Hakim e observou como as pessoas freqüentemente se reuniam em torno de seu tabuleiro para discutir livros, política e filosofia. Hakim era um exemplo de ?personalidade pública? ? um personagem que pertence à vida nas calçadas e que mantém um contato regular com uma ampla variedade de pessoas. Duneier acreditava que o papel de Hakim nas calçadas e sua história de vida um tanto fora do comum (ele abandonou o mundo empresarial para vender livros nas ruas) poderiam servir como uma importante janela para a vida das calçadas do Greenwich Village.
Embora Hakim tenha hesitado em se tornar o tema da pesquisa, ele acabou concordando em cooperar com Duneier, permitindo que este escrevesse a respeito de sua vida e de seu trabalho. Duneier conduziu um trabalho etnográfico de campo: ele passava um tempo observando Hakim em seu tabuleiro, ouvindo as interações dos clientes com Hakim e dos clientes entre eles, e testemunhando como a presença dos livros poderia inspirar o diálogo e o debate nas calçadas. Após dois anos de observação, ele redigiu um manuscrito de sua pesquisa sobre a vida e as atividades cotidianas de um vendedor de rua e das pessoas que o procuravam para discutir livros.


Repensando o foco da pesquisa

O manuscrito foi aceito para publicação, mas Duneier sentia-se apreensivo. Ele havia pedido a Hakim que comentasse o manuscrito ? um processo às vezes denominado ?validação do entrevistado? ? e estava preocupado com um dos comentários. Hakim achou que o manuscrito concentrava-se demais sobre ele e seu tabuleiro; que o foco da pesquisa de Duneier era muito limitado para captar outras dinâmicas importantes presentes nas calçadas ? que, sozinho, o seu caso não era adequado para transmitir a complexidade da vida social nas ruas.
Duneier percebeu que os comentários de Hakim eram válidos e sugeriu uma nova maneira de desenvolver melhor o projeto de pesquisa. Convidou Hakim para apresentar com ele um seminário na Universidade da Califórnia, como forma de se concentrarem nos detalhes dos temas levantados no manuscrito, ao mesmo tempo que envolviam um grupo de estudantes na discussão. O foco da pesquisa de Duneier evoluiu assim que ele e Hakim apresentaram juntos The life of the street and the lige of the mind in black America (?A vida das ruas e a vida na mente da América negra?). Ele passou a entender como uma abordagem mais ampla da vida nas calçadas poderia superar algumas das limitações da pesquisa original. As perguntas dos estudantes serviram como uma importante orientação nesse aspecto: Onde Hakim conseguia seus livros? Qual o papel dos mendigos nas calçadas? Como os moradores brancos do bairro interagem com esses homens? Ao abrir seu primeiro trabalho para o escrutínio, Duneier conseguiu formular uma nova abordagem para sua pesquisa.


O ?ingresso? como observador participante

Quando Duneier retornou às calçadas do Greenwich Village, ele na era mais apenas um observador, mas um participante ativo da vida cotidiana do local. Com a ajuda de Hakim, ele chegou a um acordo com Marvin, um vendedor de revistas de uma quadra vizinha, para passar um verão trabalhando com ele em seu tabuleiro. Marvin ?patrocinou? a presença de Duneier na quadra, apresentando-o aos outros homens que ganhavam a vida nas ruas e dando credibilidade à sua pesquisa. Entretanto, mesmo com o auxílio de Marvin e de Hakim, Duneier teve que enfrentar diversos desafios como observador participante. O processo de ?ingressar? na vida das calçadas demandou tempo e paciência. Sendo um homem branco extremamente culto, da classe média alta, Duneier ocupava uma posição social muito distinta daquela dos homens pobres, negros, estigmatizados, que eram o foco de seu estudo. Duneier reconhecia que seria inútil tentar se ?encaixar? ? mesmo que ele tentasse mudar sua maneira de vestir ou de falar, ainda assim ele se sobressairia. Em vez disso, ele concentrou-se em construir, aos poucos, relações de respeito mútuo com os homens nas calçadas. Passava mais tempo escutando do que falando, confiando nas conversas informais com os homens em vez de nas entrevistas ?formais?. Duneier ganhou o consentimento dos homens da quadra para deixar um gravador ligado o tempo todo embaixo do tabuleiro de revistas onde ele trabalhava; os homens familiarizaram-se com o equipamento e muitas vezes ofereceram-se para ?controlá-lo? quando ele se afasta do tabuleiro, ou quando não estava na cidade.
A presença de Duneier foi gradualmente aceita, e nos dois anos seguintes ele transformou-se em um personagem habitual da calçada. Embora Duneier tivesse ?ingressado? naquele ambiente com sucesso, ele entendia que tolerar um observador participante e confiar nele não são necessariamente  a mesma coisa. Duneier sabia que alguns dos homens na quadra suspeitavam dos motivos que estavam por trás de sua pesquisa e imaginavam que ele estivesse tentando ganhar dinheiro com um livro que contasse a vida deles. Outros achavam que ele era bem-intencionado mas ingênuo, sendo, portanto, um legítimo ?alvo? para exploração. No começo, os mendigos, que viam Duneier como um ?intruso rico?, sempre lhe pediam pequenas quantias em dinheiro. Para Duneier, era difícil dizer ?não? a esses pedidos, ainda que ele estivesse financiando sua própria pesquisa e não tivesse muito dinheiro sobrando. Duneier sentia-se de mãos atadas ? como conseguiria transmitir seu objetivo enquanto pesquisador e seu profundo respeito pela luta diária dessas pessoas sem ter que estar todo o tempo distribuindo trocados e notas de dólar? Com grande dificuldade, Duneier aprendeu a dizer ?não? para os habituais pedidos de dinheiro, mas dispunha-se a ajudar de outras maneiras ? lidando com proprietários de imóveis, ou dividindo seus conhecimentos jurídicos. Duneier descobriu que um dos principais desafios que enfrentava como etnógrafo, no trabalho em uma comunidade carente, era decidir quando era apropriado intervir na vida das pessoas que estavam no centro de sua pesquisa.


A etnografia nas publicações: anonimato, consentimento e relações de poder

Toda pesquisa que lida com os seres humanos pode apresentar dilemas éticos. Duneier foi honesto com os homens nas ruas a respeito da finalidade de sua pesquisa e da sua identidade de sociólogo, mas ele também precisou ter cuidado em relação às questões éticas envolvidas na publicação das descobertas de sua pesquisa. Os sujeitos que participam de um estudo etnográfico podem achar a publicação dos resultados ofensiva, ou por terem sido retratados por um ângulo desagradável, ou porque alguma atitudes e comportamentos que eles prefeririam manter em segredo são tornados públicos. Essa foi uma questão potencialmente problemática na pesquisa de Duneier: o manuscrito descrevia, em detalhes, tópicos como urina em público, assédio a mulheres que passavam pela rua, vício de drogas e álcool e tensões com a polícia local. Os indivíduos do estudo de Duneier eram vulneráveis e relativamente impotentes; para eles, seria difícil reagir publicamente ao livro e ao seu conteúdo após sua publicação.
Ao publicar suas descobertas em Sidewalk (1999), Duneier rompeu com a prática adotada por alguns sociólogos de esconder os nomes das pessoas e os locais retratados no trabalho. Ele imaginou que revelar a verdadeira identidade dos sujeitos estudados elevaria o padrão de responsabilidade de sua pesquisa. Além do mais, segundo Duneier, os homens que viviam nas calçadas não estavam preocupadas com o fato de suas identidades serem reveladas; alguns deles até gostavam da idéia de verem suas palavras e imagens publicadas. No entanto, ao optar pelo abandono do anonimato, Duneier teve o cuidado de assegurar que cada indivíduo que figurava no livro estivesse ciente do modo como fora representado. Ele levou uma cópia do manuscrito final para o quarto de um hotel situado próximo àquela quadra e convidou cada pessoa que aparecia no livro para revisar todos os pontos nos quais ela era mencionada. Em muitos casos, esse processo revelou-se difícil. Muitos dos homens estavam menos interessados no argumento que estava sendo apresentado no livro do que em sua aparência nas fotografias. Duneier constatou que suas tentativas de demonstrar ?respeito?, mostrando o texto para as pessoas que nele haviam sido citadas muitas vezes acabaram sendo um tiro que saiu pela culatra, fazendo com que ele se sentisse como se estivesse impondo seu programa sobre uma audiência relutante. Mesmo sendo um processo difícil, Duneier acreditava que isso era necessário para que o livro garantisse a integridade dos homens nas ruas.
Ao longo da pesquisa, Duneier sensibilizou-se bastante com as diferenças de raça, classe e status entre ele e os homens que trabalhavam nas ruas. Porém, mesmo no manuscrito final, achou difícil ignorar as relações de poder existentes entre ele ? o autor ? e aqueles homens que apareciam como tema do estudo. Acreditando na importância de que essas pessoas tivessem a oportunidade de reagir à pesquisa que havia conduzido, Duneier convidou Hakim para escrever o epílogo de Sidewalk. Embora Hakim certamente não pudesse falar por todos os homens da quadra, ele já estava envolvido no projeto desde o início e podia oferecer uma perspectiva diferente daquela do pesquisador.
Duneier também estava ciente da longa tradição de estudiosos brancos que se apoderam das palavras e das imagens de negros pobres para proveito próprio.  Para Duneier, era importante que sua pesquisa não perpetuasse tais formas de exploração acadêmica; ele fez acordos legais para a divisão dos royallties do livro com os homens que nele apareceram. Duneier reconheceu que as ações do pesquisador social não podem separar-se do contexto histórico e cultural mais amplo no qual elas ocorrem. Atentou para a idéia de que seu próprio papel enquanto sociólogo deveria contribuir para superar ? e não para piorar ? a divisão entre os favorecidos e os desfavorecidos na atmosfera urbana que trabalhara.

Conclusão: a influência da sociologia

Em geral, a pesquisa sociológica desperta interesse de muitas pessoas, além da comunidade intelectual de sociólogos, e seus resultados normalmente são bem definidos. A sociologia, é preciso enfatizar, não é apenas o estudo das sociedades modernas; é um elemento significativo na continuidade da vida dessas sociedades. Tomemos como exemplo as transformações que afetam o casamento, a sexualidade e a família. Diante da infiltração da pesquisa sociológica, poucas pessoas que vivem em uma sociedade moderna não têm noção dessas mudanças. Nosso pensamento e nosso comportamento são afetados pelo conhecimento sociológico de maneiras complexas e muitas vezes sutis, remodelando, assim, o próprio campo da investigação sociológica.
Não deveríamos nos surpreender com a íntima correlação que, muitas vezes, há entre as descobertas sociológicas e as convicções do senso comum. O motivo disso não está simplesmente no fato de que a sociologia apresenta descobertas que já conhecíamos, mas, sim, na idéia de que a pesquisa sociológica exerce uma influência contínua sobre a verdadeira essência do que conhecemos como senso comum na sociedade.


[1] Texto adaptado e formado por trechos do capítulo 20 do livro Sociologia de Antony Giddens. Porto Alegre: Editora Artmed, 2004.



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