Clifford Geertz é considerado o fundador de uma das vertentes da Antropologia, a Antropologia Interpretativa, a qual tem como uma de suas características a leitura das sociedades como textos ou como análogas a textos.
No livro Obras e Vidas: o antropólogo como autor a discussão recai sobre a etnografia enquanto um trabalho mediado entre os dois âmbitos relacionados com a sua construção : o ?estar lá? e o ?estar aqui?, isto é, o âmbito da pesquisa de campo, e o âmbito acadêmico. Como compatibilizar o mundo do campo com o mundo acadêmico é a questão problematizada no livro.
No capítulo ?Estar lá: a antropologia e o cenário da escrita? Geertz apresenta, inicialmente, as objeções destinadas à concepção da etnografia enquanto ?espécie de escrita?, estas concordam com a idéia de que o caráter literário atribuído aos textos etnográficos não se constitui em uma preocupação preponderante, uma vez que o trabalho de etnógrafo é ?ir a lugares, voltar de lá com informações disponíveis à comunidade especializada? através de textos ?simples e despretensiosos? que não sejam ?um mero jogo de palavras, como se presume que sejam os poemas e os romances?.
O sentido para tal temor reside, segundo Geertz, no fato de que compreender o caráter literário da antropologia colocaria em risco a defesa de que os textos etnográficos convencem pela simples abundância de seus detalhes culturais. Entretanto, o crédito dado aos antropólogos pela extensão de suas descrições não se sustenta. O critério de verdade reside menos na aparência factual, ou no ar de elegância conceitual. O convencimento está no fato de haverem realmente estado lá.
Diante disso, descobrir como o convencimento é criado fornece os critérios para o julgamento do trabalho. ?A crítica dos escritos antropológicos deve brotar de um engajamento com eles, e não de pré-concepções sobre como deve ser a antropologia para se qualificar como ciência? (pg. 17).
Assim, apresenta a questão ?o que vem a ser um autor na antropologia?. Para responder a esta Geertz, toma como referência a distinção dos campos de discurso apresentada por Foucault, a saber: o da função-autor e o da ciência. Na análise de Foucault, os discursos literários passaram a ser aceitos somente quando eram dotados da função-autor. Desse modo, Geertz conclui que na antropologia, salvo exceções, ?os nomes das pessoas são ligadas a livros e artigos e, mais ocasionalmente, a sistemas de pensamento?. Sendo assim a antropologia está praticamente toda do lado dos discursos literários.
Com relação a isso surgem as seguintes questões: ?Como se evidencia no texto a ?função-autor?? De que o autor é autor??. A primeira questão é chamada de ?questão da assinatura?, isto é, a construção de uma identidade autoral. A segunda refere-se a ?questão do discurso?.
A questão da assinatura tem sido colocada na etnografia de forma disfarçada, apresentada como um problema de ordem epistemológica e não de ordem narrativa, isto é ?O texto é apresentado como decorrente das complexidades das negociações entre o eu e o outro e não entre o eu e o texto?. A dificuldade reside na ?estranheza de construir textos ostensivamente científicos a partir de experiências em grande parte biográficas? (pg. 22).
Observa-se assim, a oscilação, nos textos etnográficos, entre o ?olimpianismo do físico não-autoral? e a ?consciência do romancista hiperautoral?.
A segunda questão (a do discurso) é apresentada em diálogo com Foucault e Barthes. O primeiro faz uma tipologia de autores: aqueles ?a quem a produção de um texto, um livro ou uma obra pode ser legitimamente atribuída ? produtores de textos particulares? e aqueles ?de peso bem maior, que são autores de muito mais que um livro, mas de uma teoria, uma tradição ? produtores de discursividade? (pg. 31).
Barthes formula a distinção nos termos: escritor e autor. Um escritor produz um texto, exerce uma atividade, sendo comparado a um escriba. Já um autor produz uma obra, cumpre uma função, participa analogamente do papel de sacerdote. Para um autor ?escrever é um verbo intransitivo?, enquanto que para um escritor ?escrever é um verbo transitivo?.
Os antropólogos, ainda parecem inclinar-se entre as duas distinções. ?A incerteza que aparece, em termos de assinatura, como um até que ponto e de que maneira invadir o próprio texto. E, aparece, em termos do discurso, como um até que ponto e de que maneira compô-lo imaginativamente? (pg. 35).
Do trabalho de campo, isto é, da experiência do ?Estar lá? que, segundo Geertz, refere-se a uma experiência de cartão postal, emerge outro ponto, que será discutido no capitulo seis: ?Estar aqui: de quem é a vida, afinal??. O que se coloca em pauta neste ponto é a discussão do Estar aqui, como âmbito que produz o antropólogo, que ?faz com que o texto antropológico de alguém seja lido... publicado, criticado, citado e ensinado? (pg.170).
Neste sentido, a questão formulada refere-se às transformações ocorridas tanto no mundo estudado quanto no mundo acadêmico. Tais transformações são fruto das novas maneiras assumidas pelo mundo depois do colonialismo e do permanente processo de globalização. ?O fim do colonialismo alterou radicalmente a natureza da relação social entre os que perguntam e observam e os que são perguntados e observados? (pg. 172).
Geertz apresenta a confusão entre, diante destas transformações, o objeto e o público. Isso faz com que os antropólogos se questionem: ?Quem deve ser convencido? E convencidos de quê?? (pg.174).
A cena antropológica passa a ser permeada pela desconfiança, pelo mal-estar, já que a ?se começa a olhar para os textos de etnografia, além de olhar através deles, e se percebe que eles são construídos para persuadir aqueles que os produzem passam a ter mais porque responder? (pg. 181).
Assim Geertz pergunta qual a razão para se fazer antropologia hoje, dando como resposta o seu caráter de servir de comunicação entre os grupos que são forçados a convivência cada vez mais cotidiana.
Isso envolve ainda a capacidade de convencimento, de que o que eles estão lendo é um relato autêntico, escrito por alguém que Esteve Lá. Isso evidencia, assim, o vínculo textual entre as facetas do Estar Lá e do Estar Aqui da antropologia, a construção que é imaginativa, que se adapte ao algo novo que emerge no mundo do campo e no mundo acadêmico.
REFERÊNCIAS
GEERTZ, Clifford. Obras e Vidas: o antropólogo como autor. 2 ed. Rio de Janeiro: Editora UFRJ, 2005.
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