Sociologia

Crônicas de pesquisa: A produção do conhecimento a partir de indagações próprias de nosso contexto

Celso Konflanz

Uma das questões que frequentemente vem à tona em minhas reflexões se refere à construção do conhecimento e a escolha dos temas de pesquisa. Afinal existem assuntos que podemos tratar com mais propriedade que outros? E se existem, que assuntos são esses que nos permitem falar com mais veemência, com mais profundidade? Será que o contexto em que estamos envolto influencia nisto? Pode alguém ter mais capacidade do que outro para falar de um assunto em detrimento da diferença contextual de ambos? Estas são as questões que refletiremos brevemente.

Na busca dessas respostas achei por bem observar os estudos dos principais teóricos do pensamento ocidental, pois neles podemos constatar que os temas sociológicos e do pensamento em geral - quando apresentam profundidade reflexiva - estão em grande medida ligados a uma matriz social própria.

Como disse Tolstoi: ?para ser universal basta falar da sua aldeia?. Essa frase pode ser compreendida em sua essência somente quando observamos que os grandes pensadores ? no desenvolvimento de suas teorias - estavam falando da realidade da sociedade em que estavam inclusos.

As reflexões iluministas sobre a repúbica de Rousseau, Voltaire, Montesquieu, por exemplo, se referiam a um contexto muito próprio da frança de suas épocas, e mais especificamente da corte francesa nos últimos tempos da monarquia. Do mesmo modo, as reflexões do início da idade contemporânea sobre o capitalismo, protagonizadas por Adam Smith, David Ricardo, Karl Marx, etc. também se referiam a um contexto muito próprio da revolução industrial inglesa. Igualmente os estudos sobre colonização e diferenças culturais desenvolvidas por antropólogos principalmente ingleses e franceses também estavam ligados ao contexto das metrópoles colonialistas em que viviam.

Em suma, e quase redundantemente, podemos e devemos dizer que os franceses escreveram sobre a França, os alemães sobre a Alemanha, os ingleses sobre a Inglaterra. Embora isto pareça obvio, não é tão claro assim para boa parte dos intelectuais.

Podemos afirmar, então, que os grandes intelectuais se fizeram nos atos dos acontecimentos e falando dos fatos que vivenciaram. Estes estudos foram universalizados na medida em que faziam sentido para outras realidades. Neste sentido, não se pode buscar ser universal falando de temas universais, pois os temas universais estão ligados a realidades específicas, e só podem ser decifrados nesses contextos. A universalidade do fato será dada a posteriorida reflexão sobre o mesmo, se este for anseio de outras comunidades também.

E agora, tocando em nossa ferida, sobre a construção do conhecimento nas ex-colônias europeias da América latina, podemos dizer que ainda existem grandes dificuldades em desencilharmos teoricamente das antigas metrópoles. Embora haja vasta produção intelectual, ainda pouco nos destinamos a desenvolver teorias explicativas próprias da realidade do continente. As pesquisas empíricas são em grande parte fundamentadas pelas teorias europeias.

Dir-se-á então que não podemos utilizar essas teorias? De forma alguma, o pensamento não tem fronteiras. As teorias do Norte são de grande valia para nossos estudos, contudo não devem ter a pretensão de explicar nossa realidade, pois não foram construídas para tal. Elas devem ser utilizadas com a finalidade de contribuir para a construção de nossas próprias explicações teóricas sobre a realidade.

Ou seja, pode e deve haver um dialogo teórico entre as sociedades, mas como somente aqueles que estão nos atos dos acontecimentos podem compreender com profundidade a natureza dos fenômenos em questão ? e, portanto somente estes podem demonstrar com propriedade o funcionamento dos fatos ? somente nós mesmos poderemos desenvolver as elucidações teóricas adequadas à explicação dos fenômenos aqui manifestos.

Como experiência própria, posso dizer que no desenvolvimento de minha pesquisa de mestrado intitulada ?a atuação do tradicionalismo gaúcho na era da cultura-mundo? a primeira coisa que fiz - como não poderia deixar de ser - foi ir diretamente aos conceitos clássicos de tradição e as elaborações sobre o tema, encontradas em Hobsbawm e Terence Ranger, e tentar aplicá-los a explicação do Tradicionalismo Gaúcho.

Neste exercício me deparei com grandes dificuldades teóricas, quando um fato se encaixava nestas teorias outros ficavam incompreensíveis. Quanto mais eu tentava ajustar, mais estranha ficava a explicação. Mas isso não por que a teoria de hobsbawn é ruim, pelo contrário, mas porque ela não foi construída pensando a realidade do Tradicionalismo Gaúcho e o contexto que o envolve, mas a realidade britânica e a tradição escocesa.

Neste sentido, portanto, adotar uma teoria explicativa e seus conceitos criados a partir de uma realidade específica e tentar aplicá-los para compreender um fenômeno manifesto em outras condições, significa não conseguir chegar a resultados satisfatórios. É um erro metodológico.

A solução para resolver os problemas de minha pesquisa e chegar a uma explicação satisfatória do fenômeno do tradicionalismo gaúcho, foi primeiramente me livrar da tentação de utilizar os conceitos clássicos diretamente para explicar o meu objeto. Esses conceitos poderiam me ajudar, mas não seriam a salvação. O caminho foi muito mais longo, foi necessário revisitar a história do continente, do Brasil, do Rio Grande do Sul, do próprio Tradicionalismo, para contextualizá-lo. Foi imprescindível também compreender sobre os temas sociológicos e antropológicos de modernidade, pós-modernidade, multiculturalismo, indústria cultural, folclore, globalização, etc.

Baseado nesses estudos foi possível iniciar um exercício de construção daquilo que seria a explicação para o fenômeno. Foi necessário o recorte de macro teorias européias, a conjugação de conceitos diferentes, a adaptação de explicações, a demonstração de processos históricos, a comparação de informações, a observação de ângulos diferentes, entre outras atividades para compor aquilo que considero ser uma explicação razoável para o fenômeno.

Com essa elaboração foi possível enquadrar o tradicionalismo nos diversos acontecimentos que o cercam, compreender suas características peculiares e sua forma de atuação. Em ultima analise o fenômeno foi satisfatoriamente compreendido por meio de uma teoria explicativa formulada por sobre a realidade própria do fenômeno. Entendimento que não poderia ocorrer na mesma precisão utilizando de conceitos formulados por sobre outras realidades.

Neste sentido então somente compreenderemos nossa realidade social com profundidade quando nos dedicarmos a pensar teoricamente sobre nos mesmos. Teorias alheias somente servem para ajudar a compor nossas próprias teorias, mas não podem explicar nossa realidade, pois não foram desenvolvidas para isso. Da mesma forma ninguém está mais apto a compreender nossa própria realidade do que nós mesmos, pois afinal nos somos os sujeitos que estamos vivendo nos atos dos acontecimentos que envolvem nossa sociedade. E a percepção mais profunda desses atos só pode vir de quem os vive. Finalmente é por meio dessa reflexão com propriedade sobre as coisas que nos cercam que levam as teorias a se tornarem universais.

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