entrevista: o golpe e a ditadura militar no brasil
Sociologia

entrevista: o golpe e a ditadura militar no brasil


[Janio Quadros while campaigning 
for the presidency.
Brazil, February 1960
Frank Scherschel] 

adriano codato
entrevista concedida ao jornal Metro (Curitiba)
31 mar. 2014

Passados 50 anos do golpe militar e 30 da redemocratização, o que na vida política brasileira ainda pode ser considerado consequência dos fatos de 1964?

As heranças mais negativas de 1964 e do regime que se seguiu ao golpe, que durou mais de 20 anos, foram ao menos duas. A tolerância da sociedade brasileira com a violência policial-militar e a crença difusa, que emerge sempre que há alguma crise, segundo a qual os problemas do País poderiam ser resolvidos por decreto, por um ditador protegido de qualquer crítica por um regime forte e discricionário. Essas duas disposições são, afinal, a essência do autoritarismo à brasileira.

Quais os maiores prejuízos que o país sofreu com os governos militares? Violações de direitos humanos? Torturas? Medo? Falta de direito à escolha?

Todas essas coisas. O balanço das perdas está ainda sendo feito. Mas a regressão autoritária, além de ter mantido o Brasil como um país culturalmente provinciano, politicamente violento e socialmente desigual, atrasou demais a extensão dos direitos de cidadania a toda a população.

Houve alguma contribuição positiva, na sua opinião?

Os governos militares foram nacionalistas e desenvolvimentistas. O regime ditatorial-militar assumiu um projeto de modernização das estruturas arcaicas do capitalismo brasileiro. Isso exigiu grandes investimentos em infraestrutura, telecomunicações, energia, a criação de um banco central e de um mercado de capitais. Geisel distanciou a política externa brasileira da influência estrita dos Estados Unidos. A ditadura refez a contabilidade pública, a administração do Estado e a organização das universidades, por exemplo. E tentou, até onde foi possível, fazer das mais de 100 empresas estatais que criou instrumentos de governo. Mas esse desenvolvimento não foi acompanhado de uma política de distribuição de renda. As desigualdades básicas da sociedade brasileira foram conservadas. Em resumo: uma modernização, mas uma modernização conservadora.

Dá para dizer que em algum estado da Nação o regime foi mais sentido? Como foi no Paraná?

A repressão ditatorial foi mais intensa nos estados onde havia uma contestação mais organizada. As cassações, perseguições e prisões atingiram primeiro os políticos trabalhistas, logo depois os militantes e dirigentes comunistas, em seguida os estudantes universitários e suas lideranças, as organizações de luta armada, o partido da oposição (o MDB), as associações de profissionais de classe média (advogados, jornalistas). A contabilidade de desaparecidos foi maior nos estados do Rio de Janeiro e de São Paulo. No Paraná a repressão também foi muito violenta, mas concentrada em certos períodos.

Podemos fizer que o Brasil tem uma democracia bem consolidada?

Sim e não. Do ponto de vista institucional, sim: liberdade de expressão, justiça independente, direito à oposição, eleições livres e periódicas, respeito à alternância no poder, tolerância diante de movimentos sociais e de trabalhadores, partidos, sindicatos e organizações como canais de representação de interesses e opiniões. Mas nunca se está seguro. Há correntes de opinião autoritárias e intolerantes, violência e arbitrariedade policial, uma cidadania segmentada por classe, oligopólio na produção e difusão de informações e uma incompreensível indisposição dos nossos liberais em defender apenas a liberdade para fazer dinheiro e não as liberdades individuais.

Há sinais, atualmente, de que podemos voltar a ter um regime de exceção?

Não há. Os movimentos reacionários, os grupos de extrema-direita, os partidos conservadores combatem os próprios fantasmas (o comunismo, a reforma agrária, a ditadura gay). E alimentam um ódio de classe diante das políticas sociais (bolsa família) e do acesso ao mercado de consumo por parte de outras camadas sociais. Com uma agenda dessas, é difícil ser muito popular.

Como interpretar iniciativas como a reedição da Marcha da Família com Deus pela Liberdade?

Essas passeatas ultraconservadoras, seu figurino militar e a estética fascista, suas palavras de ordem retrógradas, o projeto golpista que as anima, a intolerância política, a incompreensão sobre os fundamentos da democracia - conflitos de posições e direitos de expressão - são a manifestação mais eloquente de uma cultura autoritária. Essa cultura foi incentivada, aperfeiçoada e reforçada pelo regime ditatorial-militar. Até a gramática é a mesma. Reformas sociais são iguais a ?comunismo?, conflitos e contestações são sinônimos de ?desordem? e a única métrica para julgar os governos (os de esquerda, bem entendido) é a taxa de ?corrupção?. Essa cultura da intolerância política e social é o ovo de serpente da nossa democracia.

Existem outras semelhanças entre o momento atual e a fase pré-golpe de 64?

As semelhanças são muito superficiais. As crises políticas que sucederam entre 1961 e 1964, a retórica das principais personagens, suas tomadas de posição contra ou a favor do governo Goulart estavam muito influenciadas pela polarização ideológica da Guerra Fria, que dividia o mundo entre dois blocos inconciliáveis, o capitalista e o comunista. No Brasil dos anos sessenta essa divisão era até mais complicada, porque sobre esse eixo havia outros, que opunham reformistas e conservadores, tradicionalistas e trabalhistas, católicos e populistas. Hoje se pode dizer que os três grandes temas que unificaram a oposição golpista contra o governo de Goulart estão de volta: caos social, corrupção política e ?comunismo?. Mas estão de volta mais pela batalha retórica que grupos muito pequenos de extrema-direita travam contra o governo social-reformista liderado pelo PT. Esses grupos às vezes parecem muito mais importantes do que de fato são (seja em termos eleitorais, seja em termos sociais) em função da divulgação e do notável apoio que encontram na grande imprensa conservadora.
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