Por Marcos Marques de Oliveira
A exaltação ao Terceiro Setor, de acordo com o defendido neste artigo, promove a despolitização da sociedade civil através da desmobilização e fragmentação da classe trabalhadora, processos tidos também como ?naturais?. Aparece, portanto, como um importante instrumento para a constituição de uma relação Estado / sociedade civil dominada pelas forças do mercado.
Nosso objetivo com essas reflexões, portanto, foi fortalecer a hipótese de que os efeitos do trabalho voluntário e do associativismo solidário no sistema educacional merecem a atenção dos que se preocupam com o ensino público brasileiro. Como já defendido em outro momento (OLIVEIRA, M. M. A mercantilização dos direitos e os novos dilemas da educação brasileira [p. 92-99]. ANDES, Revista Universidade e Sociedade, v. 13, n. 30, Jun. 2003), é preciso investigar a fundo os pressupostos e as promessas que fundamentam o debate sobre o papel do chamado Terceiro Setor na atual etapa de acumulação de capital, que coincide com a suposta derrocada do ideário neoliberal e o fortalecimento de um novo ideal societário baseado em atores sociais que, em tese, conjugam virtudes e benefícios dos setores público e privado, sem carregar seus vícios (a ineficiência, no primeiro caso, e o interesse de lucro, no segundo).
Originalmente denominados de organizações não-governamentais (ONGs), tais atores vêm, nos últimos anos, assumindo a execução de inúmeras políticas públicas. Sob intensa profissionalização, as atualmente chamadas organizações sociais (OSs) vêm abarcando grande parte de recursos governamentais e privados com a tarefa de promover ações sociais antes de responsabilidade estatal.
Como defende Carlos Montaño (O terceiro setor e questão social - crítica ao padrão emergente de intervenção social. SP: Cortez, 2002.), as apologias acríticas sobre o papel do Terceiro Setor no trato das questões sociais é sintoma da hegemonia do ideário neoliberal, e não o seu contrário. São, desta forma, discursos que justificam, estimulam e escamoteiam a retirada das políticas estatais de universalização compulsória de acesso e financiamento dos direitos sociais (principalmente educação, saúde e segurança) em prol da proliferação de agentes privados que executam políticas sociais mitigadas. Abre-se, assim, um vasto campo para um novo processo de acumulação de capital com a mercantilização dos direitos sociais, vistos agora não mais como obrigação do Estado para com seus cidadãos, mas como dever individual de execução ou recebimento (dependendo de qual lugar se ocupa na estrutura de classes).
O nosso Florestan Fernandes (que foi objeto de nossa tese doutoral, em livro disponível na "Coleção Educadores"), já afirmava, em 1960, que sob o disfarce de motivos ideológicos, de fins altruísticos e de realizações econômicas são organizados movimentos sociais que arrastam em seu bojo pessoas que poderiam ser qualificadas de ?inocentes? (com relação à consciência dos fins reais dos movimentos de que participam ou ao qual aderem), já que é extremamente difícil para grande parte da população, devido às condições modernas de existência social, descobrir o real sentido dos respectivos movimentos. Os prejuízos morais e materiais que sofrem só são percebidos tardiamente. O exemplo que Florestan cita é justamente o ?modelo? preferido dos ideólogos do neoliberalismo, o norte-americano, onde vários ?movimentos sociais? com fins altruísticos aparentes são organizados para levantar fundos e mobilizar as energias humanas requeridas pela luta contra determinado efeito indesejável, mas que no fundo acabam por satisfazer necessidades egoísticas dos manipuladores profissionais.
"Etérea boa-vontade pública"
No I Congresso Nacional de Educação (I CONED), realizado no ano de 1996, um outro pensador do sistema educacional brasileiro, Demerval Saviani (apud SILVA, O. A educação na Assembléia Nacional Constituinte sob a ótica de Florestan Fernandes: um esdtudo da participação popular nos quadros da democracia da Nova República. UFOP/ICHS, Ouro Preto, abril de 1998.), fez o seguinte alerta:
"A situação tende a se agravar atingindo limites intoleráveis num contexto como o de hoje em que o Estado busca demitir-se de suas responsabilidades transferindo-as para outras instâncias. Com efeito, a orientação neoliberal adotada pelo governo Collor e agora pelo de Fernando Henrique Cardoso vem se caracterizando por políticas claudicantes: combinam um discurso que reconhece a importância da educação com a redução dos investimentos na área e apelos à iniciativa privada e organizações não-governamentais, como se a responsabilidade do Estado em matéria de educação pudesse ser transferida para uma etérea boa vontade pública".
Frente às políticas sociais dos últimos governos, incluindo os do PT, registro, como alerta, a afirmação feita (e registrada aqui de forma livre) pelo renomado pesquisador da área educacional Gaudêncio Frigotto, no 2º Seminário Nacional de Educação do CEFET-Campos, em agosto de 2003: "A educação pública para uma sociedade democrática, ainda que possa contar com a contribuição de 'amigos' e 'voluntários', não pode prescindir, em nenhuma hipótese, do profissionalismo dos 'servidores' do público, capacitados e apoiados por um Estado comprometido com o desenvolvimento de uma democracia substantiva e popular".
* Versão sintética e adaptada da comunicação ?Terceiro setor, voluntariado e educação: os caminhos giddenianos para a privatização do público?, feita no III Seminário Nacional da Faculdade de Educação da UFF, realizado de 3 a 5 de Setembro de 2003, sob o tema ?Educação e Poder: Tensões de um país em mudança?. Outras versões deste texto foram publicadas também na Revista Achegas e no livro Educação, fronteira política, organizado por Artemis Torres, Giovanni Semeraro e Luiz Augusto Passos (Cuiabá: EdUFMT, 2006).
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