OS CAVALOS QUE SOMOS
Sociologia

OS CAVALOS QUE SOMOS


Olá!
Hoje, apresento a vocês mais um dos textos do Albor, comentando o filme "Cavalo de duas pernas", de Samira Makhmalbaf. Não há como ficarmos indiferentes à sua escrita e ao desassossego que a temática do filme provoca em nós.


Os cavalos que somos

Filmes iranianos são inegavelmente uma outridade. A narrativa é diferente, a língua é diferente, os atores, gestual, expressividade, tudo difere da ocientalidade, assistimos um filme ?de lá? com um misto de curiosidade, surpresa, aborrecimento, tédio, indignação, expectativa etc. Usualmente o filme nos dá algo diferente do que esperamos, claro, por isso ele é diferente, por isso é uma expressão do outro.
O último filme de Samira Makhmalbaf (A maçã de 1994 é talvez seu mais conhecido filme apresentado por aqui, que com uma ternura incomensurável desvela a tragédia do abandono familiar) escrito pelo pai, o também cineasta Mohsen Makhmalbaf, é Cavalo de duas pernas (Asbe du-pa - 2008), e entra, ou melhor invade, ou melhor ainda avassala o espectador de modo indiscutível. Não se poderá ficar intocado frente à história, à narrativa, aos personagens, às relações. Como em Irreversível de Noé, teremos sempre a imagem de algumas cenas nos acompanhando.
Um menino mimado pelo pai teve as pernas amputadas por uma mina, que também vitimou sua mãe, sua irmã sofre de alguma doença e viaja com o pai para o exterior. Na miserável cidade o cuidador do menino contrata um miserável moleque forte para servir de transporte do inválido, levando-o ?de cavalinho? para as aulas e passeios.
É fácil e tentador ver as analogias sociais: país rico oprimindo o país pobre, o filme rodado no Afeganistão depois da invasão russa, depois da invasão estadunidense; pessoa rica oprimindo a pobre; dominação pela miséria ...
E não se poderá dizer que isso não faça parte das leituras possíveis. Como toda obra de arte esta se presta a estas leituras. Mas evidentemente ela vai além.
Porque o aleijão se afeiçoa de algum modo a seu ?cavalo?, este, com algum deficiência mental se adéqua às ordens de seu senhor e seja pelo dinheiro que recebe, que aos poucos perde importância, seja pela relação de submissão ? único vínculo que vive no filme todo ?, é a contraparte relacional da dominação opressiva.
Ninguém dá a mínima para a relação que ambos constroem. Nenhum adulto se interpõe quando os limites entre a autoridade e o sadismo são cruzados, nenhuma outra criança se enoja com a situação do cavalo, ao contrário, reafirmando a máxima que criança não presta de nascença. Querem todos dar uma volta no cavalo, conseguindo uma sela para que este fique mais cavalo ainda, ou dispondo-se a pagar mais por isso caso nos seus pés sejam pregadas as ferraduras para que o som dos passos pareça-se mais aos cascos...
Então não há relação que não seja de indiferença ou de aproveitamento, e todo afeto será vivido de um modo ou de outro, e a pequena mendiga pela qual se apaixona o ?cavalo? é ela também usada como produto de uso, submetida ao pagamento do senhorzinho feudal. Não há como não lembrar do título de Fassbinder, O amor é mais frio que a morte (1969).
E as imagens são de uma beleza plástica maravilhosa, como por sinal é comum ocorrer também em outros filmes iranianos, e talvez por isso mesmo elas nos aprisionam dessa forma irrecusável, ainda que dolorosamente incisiva: também a dor é bela, também a opressão é bela, também a submissão é bela, e se o incômodo dessas afirmações é insuportável, moralmente insuportável, pessoalmente insuportável, filosoficamente insuportável, não por isso deixa de ser verdadeiro no filme, e por isso ele escapa a qualquer panfletarismo ou propaganda fácil: ele é insuportável e belo, numa reunião que vai alem do cartesianismo ocidental e do platonismo que cola o belo ao bom e certo. E nisso ele expressa uma vez mais a outridade, mas nós somos também esse outro.
ALBOR VIVES REÑONES






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