memória histórica e ditadura militar
Sociologia

memória histórica e ditadura militar


[Flor de Gengibre, 1996.
Havaí. Derli Barroso.
Pirelli/MASP]

Corpos fechados

BORIS FAUSTO
Folha de S. Paulo, 14 fev. 2010
Mais!, p. 6

Os temas dos direitos humanos e da preservação da memória de tempos terríveis, no nosso continente, concentram-se principalmente nos casos das ditaduras instauradas na Argentina, no Chile e no Brasil, nas décadas de 1960 e 1970 do século passado.
Nesse quadro, o Brasil está bem atrás de seus vizinhos, não obstante as iniciativas dos governos Fernando Henrique e Lula, assim como das organizações da sociedade civil.
O que mais avançou foram as justas indenizações às vítimas ou a suas famílias, embora concedidas, em vários casos, com uma largueza injustificável.

Boas e más razões
O discutido terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos, encaminhado ao Congresso pelo presidente Lula nas vésperas do Natal de 2009, tratou da questão de cambulhada com uma série de outras.
Isso gerou, por boas e más razões, críticas vindas de todos os lados.
Diante delas, sob pressão militar, o Executivo alterou o texto que visa a promover a apuração e o esclarecimento das violações de direitos humanos, praticados sobretudo no contexto da repressão política, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional, suprimindo a referência à "repressão política".
A possibilidade de que torturadores venham a ser punidos é praticamente inexistente, e a preservação da memória dos tempos ditatoriais suscita muitas resistências.
Por que isso acontece? Em primeiro lugar, porque em nosso país a ditadura não abrangeu amplos setores sociais, como na Argentina e no Chile.
Evito aqui falar na infeliz contraposição entre "ditadura" e "ditablanda", pois, para vítimas de torturas e mortes, assim como para seus parentes, a expressão "ditablanda" chega a ser obscena.
Mas, no plano histórico, a amplitude menor da repressão fez com que a luta pelos direitos das vítimas e pela preservação da memória se reduzisse a círculos restritos, não obstante sua intensa atuação.
Fico num único exemplo comparativo. Não temos entre nós nada semelhante ao ocorrido na praça de Maio, em Buenos Aires, que, para muitos, é a "Plaza de las Madres", onde as mães e avós de desaparecidos manifestaram-se, semanalmente, ao longo dos anos.
A praça, em frente à Casa Rosada, tornou-se, assim, um lugar de memória.

Povo sem memória
Por outro lado, é verdadeiro e ao mesmo tempo banal constatar que somos um povo sem memória. Isso ocorre não porque a "falta de memória" esteja inscrita no DNA dos brasileiros, mas por outras razões.
O Brasil conheceu raras situações traumáticas em grande escala cujas consequências tenham atingido o conjunto da população. Nossas mazelas são de outro tipo: miséria, pobreza, desigualdade social.
Também, a precariedade de nosso sistema educacional -um dos principais instrumentos de transmissão da memória histórica ao longo das gerações- contribui para esse quadro, em que o passado se assemelha a um buraco negro, com raros clarões de luz.
Outro fator que pesa na dificuldade de preservação da memória dos anos de chumbo é a negativa de membros da cúpula das Forças Armadas em reconhecer o papel deletério desempenhado não só por militares como também por civis, na implantação do regime autoritário e em sua radicalização.
Admitir essa culpa não significa negar a profunda instabilidade do governo Jango [1961-64] nem encarar os integrantes das organizações de luta armada como jovens românticos, que lutavam pela restauração da democracia.
Mas a ação de rebeldes e a de agentes do Estado cujo dever é prender e julgar, e não torturar e matar, não se equivalem, como pretendem os que querem apagar a memória.
Nem de longe trata-se de promover a execração das Forças Armadas, hoje circunscritas a sua missão constitucional, mas de encarar de frente um período nefasto.

Reconciliação
Um exemplo simbólico vem do Chile.
Em 2006, a Marinha chilena recebeu membros do Agrupamento de Direitos Humanos Salvador Allende, em visita conjunta à ilha de Dawson, no extremo sul do país -local de prisão e tortura nos tempos de Pinochet- com o propósito de promover a reconciliação nacional e reconhecer as infâmias praticadas nos tristes tempos de um passado recente.
No caso brasileiro, abrir arquivos ainda fechados, localizar corpos de desaparecidos, instituir museus e outros lugares de memória são iniciativas que não desonram as Forças Armadas e que, ao contrário, contribuem para o fortalecimento da democracia.
Oxalá, as novas gerações de militares possam dar passos decisivos nesse sentido.

BORIS FAUSTO ([email protected]) é historiador e preside o Conselho Acadêmico do Gacint (Grupo de Análise da Conjuntura Internacional), da USP. É autor de "A Revolução de 30" (Companhia das Letras).

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