OS MESTRES ERRANTES, OS ALUNOS E A ESCOLA
Sociologia

OS MESTRES ERRANTES, OS ALUNOS E A ESCOLA


Silvia Duschatzky, socióloga argentina e coordenadora do programa de pós graduação em Gestão das Instituições Educativas da Faculdade Latinoamericana de Ciências Sociais (FLACSO), escreveu, juntamente com outros autores, um livro belíssimo intitulado ?Maestros Errantes?. Publicado pela Paidós, em 2007, os artigos relatam experiências e fazem reflexões muito ricas sobre um projeto que envolve algumas escolas situadas na periferia da cidade de Córdoba.
Para essa equipe, o mestre errante é aquele que pensa a partir de situações concretas, conectando-se não com um escola ideal, mas com os diferentes mundos que se apresentam no espaço escolar. Modos de ser, violências, perturbações o impulsionam a explorar novas formas de se relacionar com os alunos, com os colegas, com a administração institucional.
A vida errante não seria um deambular inerte, ou feito ao sabor dos acidentes, das intempéries, porque implica numa disposição ativa para tomar o que irrompe e agenciar algo em torno do que acontece no que irrompe, do que acontece nos acidentes, nas intempéries.
O mestre errante procura gestar as condições para que seu ofício tenha lugar. Quando isso ocorre também há (um) lugar para o inesperado (e as crianças podem aprender mais e melhor).
A subjetividade errante (do mestre) sai das coordenadas do molde para afirmar-se em um andar exploratório.
Enquanto a moral pedagógica não interroga, ou expulsa, ou submete o deambular a espaços controladores; a posição ética do mestre errante opera de modo a transformar o deambular disperso em um estar agrupado, ou melhor, a um estado de conversação.
Fundamentados nas obras de Gilles Deleuze, os professores dessas escolas consideram que:
indivíduos ou grupos são feitos de linhas de diversas naturezas: as duras (que tendem a fixar de modo mais estável certas coordenadas da vida); as flexíveis (que esboçam pequenas modificações e desvios); as linhas de fuga (que nos empurram para momentos nos quais logramos um maior impulso de criação).
Para mim, a parte mais instigante do texto é quando a profa. Silvia destaca, em seu artigo, a importância dos professores/investigadores não se focarem na ?transgressão? do instituído, mas sim na capacidade de operar mediante micromodulações. A idéia, diz ela, não é deter-se na medida pontual, mas ver ali uma operação que nos permita pensar em escolas modulantes mais que em moldes institucionais. A modulação, diferente do molde, implica a possibilidade de conferir a uma matéria viva diferentes formas, em virtude de considerar o potencial da situação. Os micropoderes não são micro porque acontecem em uma escola, em uma aula, ou na cabeça de um mestre. São micro poderes porque afirmam o poder da multiplicidade, da potência da heterogeneidade das práticas. Não se trata de afirmar uma postura romântica em torno destes micropoderes senão de captar a força política de certas modalidades de ação.
Um exemplo é o do aluno Martin. Onze anos, repetente, acusado de roubos, violento, bate nos colegas, ameaça professores. Uma das professoras sugere passá-lo para o sexto ano. A diretora concorda. Em pouco tempo Martin incorpora-se ao grupo, realiza as atividades do sexto ano com desembaraço e ajuda colegas com dificuldade.
Não se trata, afirma Silvia, de acabar com as configurações segundo padrões de idade, rendimento e passagens evolutivas e sim de dar abertura para a espacialização de uma experiência. A esta disposição, a equipe de Córdoba chama de vitalismo, traço principal desta subjetividade errante.
O território dos professores é, em princípio, a escola, mas o território dos mestres errantes é as crianças. Por isso mesmo, em Córdoba, o espaço de intervenção não está definido pelas fronteiras institucionais senão pelos circuitos que atravessam as crianças.
A frase de uma aluna: La escuela habla y habla de la droga, del embarazo, y mirá: Lucía está embarazada, indicou para os professores/investigadores que a escola permanece em um estado de ingenuidade, porque não dizer de cegueira, em relação às turbulências vividas pelas crianças.
Essas formas de conexão com o mundo dominadas pela representação de sujeito, de tempo, de sociedade, de vida nos situam em uma relação de exterioridade com respeito às dinâmicas reais, e o resultado disso, em geral, é uma projeção indevida de nossos pressupostos.
O contato com as crianças ao invés de produzir a passagem para formas de compreensão que habilitem fraturas, brechas múltiplas, armam diques imunizantes que nos isolam em solidão. Quando o medo de nos conectarmos com o mundo, em sua condição de forças que nos afetam, governa as respostas, o que emerge é uma fatiga que nos desconecta. A fragilidade e a vulnerabilidade são depreciadas ou não ouvidas em favor de restituições tranqüilizadoras. A distância então é o melhor antídoto.
Drogas, gravidez....Se de um lado, há corpo, sensações corrosivas, do outro, há pura representação, excesso discursivo, saturação de sentido. Então, não há encontro.
O mestre errante tem lugar na medida em que está disposto a se deixar tomar por um outro regime de visibilidade e experiência. Mas, deixar-se tomar por outros universos não é fundir-se neles senão dispor-se a pensar o que ainda não temos pensado.
A escola, ou melhor, suas linguagens constitutivas, se situam comodamente em uma perspectiva representacional desacoplada da dimensão sensível.

DIMENSÃO POLÍTICA DA ERRÂNCIAO terreno atual da errância é pos estatal, mas não por ausência de Estado senão em virtude de uma reorganização da maquinaria de poder que opera além dos dispositivos de sujeição, colocando a vida como território de domínio e controle. Os mecanismos de domínio são imanentes a todo o campo social e convertem cada um em uma fonte soberana dos comportamentos e em formas de conexão social. Os mestres enfrentam um estado de perturbação próprio de um tempo dominado pela lógica de mercado.
O que se propõe não é um pensar alternativo: disciplinamento versus formas libertárias. Mas sim, um intento de configuração no vazio da experiência instituída. Nem marginalidade, nem repressão, senão certa sensação de intempérie. Há Estado, há programas e projetos de gestão estatal, mas a cotidianidade nas escolas não logra ser tomada por suas lógicas. Os sujeitos que habitam as escolas vão inventando ou reconhecendo práticas não legitimadas pela gramática instituída e, deste modo, suplementam o que as próprias instituições não podem produzir nas coordenadas herdadas. Não se trata de apelar ao voluntarismo dos mestres errantes para que resolvam o que os dispositivos tradicionalmente instituídos ou os intentos regulatórios de gestão estatal não podem resolver, mas de conferir à errância a potência política de uma prática. Isto é, reconhecê-la como força produtora de valor social.
A subjetividade docente se assemelha mais com a tarefa de um cartógrafo que com a de um funcionário ou agente do Estado.
O mestre errante, operando à maneira de um cartógrafo, se conecta com aquelas intensidades que podem assumir alguma forma de expressão. O procedimento cartográfico não está preocupado em buscar as causas pelas quais Martin (o menino que passou do quarto para o sexto ano) não lê, nem escreve no quarto ano, mas toma tudo o que pode ser útil a ele para fazer que uma intensidade encontre múltiplas formas de expressar-se. O mestre errante, que funciona à maneira de um cartógrafo, está atento à constituição de territórios existenciais, à criação de ?mundos habitáveis?. O mestre errante é o efeito de um deslocamento do que podemos chamar de núcleos de problematização. Vê o que se converte em um problema, ou melhor que o inquieta a ponto de ser impulsionado não a pensar em abstrato senão a elaborar um pensamento necessário.
A errância se torna uma experiência política quando podemos tomar a precariedade como plataforma de pensamento de novos modos de relação social. A construção de um ?mundo? na precariedade politiza a experiência errante. Não há novos núcleos de problematização se não houver novas subjetividades. O mestre errante não segue um protocolo normativo, o que define seus movimentos é um tipo de sensibilidade. Essas novas subjetividades são o efeito de novos regimes de ver, sentir e produzir. O que faz o mestre errante é trabalhar na tensão entre suas representações e a força dos fluxos viventes. O mestre errante tenta tomar esses fluxos e fazê-los consistir em alguma configuração. Não sabe exatamente para onde vai, nem do que se nutre, mas se arroja no ensaio de estratégias variadas para tornar possíveis formas de composição que, ainda que fugazes e frágeis, põem em marcha uma máquina desejante de produção de um nós, de um agenciamento coletivo.
O mestre cartógrafo não ocupa um espaço para depois realizar tarefas, senão que constrói geografias ao mesmo tempo que as pensa.
Não se trata de ?cuidarmos de?. Os cuidados emergem como práticas orientadas à gestão e sustentação da vida, mas nada têm a ver com uma política de tutela que só vitimiza seus destinatários. Trata-se de uma prática que enlaça sujeitos e se produz em situação.
A errância corre o risco de acontecer no pequeno grupo e esgotar-se no esforço de algumas individualidades. O atributo político da errância se radica na produção de um comum na ausência de uma comunidade substantiva. Haverá portanto que imaginar sua influência nos jogos de governabilidade. Não se trata simplesmente de tolerar movimentos autônomos, senão de pensar como os micropoderes podem atravessar os sistemas de valoração educativa e os mecanismos de intervenção do Estado que, sem ser Estado-nação, é portador de um conjunto de recursos (financeiros, técnicos, estratégicos) necessários para a potenciação de práticas emergentes.
Dado que a realidade não pré-existe a seus enunciados, trata-se de pensar, por um lado, como fazer para que estes processos de singularização ganhem consistência e expressão em múltiplos planos ? textos, práticas, experiências diversas ? e, por outro, como pensar os atravessamentos destes movimentos moleculares naqueles sistemas de referência e valoração que impregnam políticas, agendas e dispositivos de regulação educativa.

CONCLUINDO
Queridos leitores e queridas leitoras, eu sei que esse texto dá o que pensar... Vou me atrever a deixar com vocês algumas questões que aliás também foram deixadas pela profa. Silvia por ocasião de nossa conversa no grupo Violar, em 19 de agosto de 2008.
- O que pode uma escola?
- O que vemos?
- Qual a fertilidade em falarmos do esgotamento das instituições educativas?
- Como as ?intempéries? podem se converter em outra coisa? Como algo que nos oprime pode se transformar em uma potência, em uma capacidade inventiva?
- Que potência tem os ?laboratórios de gestão de pensamento? dentro de uma escola? Como fazê-los funcionar? E em que sentido?
- Como a ?precariedade? politiza a experiência? Buscar interlocutores, buscar com as crianças outros modos de vida, podem politizar a experiência; podem nos fazer donos de um projeto do qual fazemos parte?
Vamos pensar?



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