(CONTO)
Por: Claudio Fernando Ramos, Abril 2013. Cacau ?:¬)
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Autor: Claudio Fernando Ramos. Brasileiro, natural da capital do Rio de Janeiro. Radicalizado em Natal, capital do Rio Grande do Norte, depois de morar por mais de vinte anos em várias cidades da Região Nordeste. O autor é licenciado em filosofia pela UFRN e vem se especializando em educação superior na UNP - RN. |
Trôpego, procurou alguma coisa em que pudesse segurar, o momento é semelhante ao que vivera na infância, quando por etapas, procurava em primeiro lugar a mãe, depois a avó e em seguida o pai, sempre que as coisas não iam bem com ele. Só que dessa vez era diferente, muito diferente. Não estavam mais ali. Um a um, foram partindo, estava só. Essa era uma verdade inexorável, não havia nada que pudesse fazer para mudar essa brutal realidade. Mas essa ainda não era a pior das verdades: desolado, constatou que havia crescido, mas que o mesmo não poderia ser dito sobre a sua maturidade. Ou seria sanidade? Não sabia ao certo. Em algum momento, do seu inseguro passado, havia errado o caminho. Espectros, próprios dos caminhos tortuosos, espreitavam seus passos. Tropeçou, sentia uma vertigem idêntica a que sentira quando andava de montanha-russa e de roda gigante, sempre tivera medo dessas formas de diversão. Alguma coisa subia do seu estomago e chegava amargamente a sua garganta; um gosto nauseante inundou-lhe a boca, regurgitou. A cabeça pendia do pescoço. Falou para si mesmo:
? Como é possível sentir a terra rodar? Ninguém pode perceber isso! Eu nunca percebi isso antes!
Seu professor de geografia, um homem de olhos claros, possuidor de um inconfundível sotaque do centro sul do país e um singular rabo de cavalo na nuca, sempre o intrigara com suas certezas espaciais; principalmente por que às convicções eram sempre acompanhadas do imaginário. Não lembrava quantas, mas desconfiava que eram no mínimo umas três linhas: câncer, equador, capricórnio...
Confuso, deixou-se dominar por um longo e denso silêncio. Havia uma tensão no ar. Só o ritmo descompassado de seu corpo se fazia ouvir, tremia. Na tentativa de sobrepujar essa condição, enrijeceu a musculatura do corpo, nada mudou. É inútil! Tudo é inútil! Sua vida é inútil! Parecia enlouquecer. Respirou fundo, segurou em um poste próximo, a terra girava um pouco mais. Tentou dar o máximo de dignidade àquele momento, coisa que não conseguira fazer a vida toda. Alguns passos incertos para frente, depois de ter ficado de pé, lhe permitiu chegar ao fim de seu tortuoso trajeto. Poderia agora, sem mais detença, por em prática o seu objetivo maior; há tempo que essa ideia o acompanhava, não era possível precisar quando especificamente. Balbuciou para si:
- Não é de todo improvável que esse seja o meu melhor momento e que essa seja a única coisa decente que faço em toda a minha frugal existência.
Por uns breves minutos, que mais pareceram uma eternidade, contemplou aquilo que os profissionais da engenharia costumam chamar de obra de arte. Nada como uma apoteose para um gran finale; ou seria grand finale? Em um passado distante ouvira alguém afirmar que essa palavra não existia em idioma algum, mas que talvez fosse uma referência ao modo italiano de dizer: grande final. Porém isso, assim como outras coisas nessa vida, pouco importava agora. Segurou na mureta da ponte, fez força e pôs o corpo sobre ela, olhou para baixo, era uma noite sem luar, por isso não era possível enxergar a água que lá embaixo passava. Um súbito deslocamento de ar fez esvoaçar parte de sua camisa, que desde que saíra de casa, encontrava em desalinho. Indiferente a sua dor, um gato de rua ronronava de dentro de um terreno baldio próximo. Voltou a ventar, dessa vez era um vento mais forte e mais frio. Lembrou de que há algum tempo vinha afirmando que não tinha necessidade de nada nem de ninguém, não tinha tanta certeza agora. O vento, como um arauto do maligno, insistia. Achou estranho, era verão, nesse período quase não ventava, nem muito menos fazia frio.
- Seria um sinal? Questionou. Para logo em seguida sorrir com amargura e melancolia. Isso não seria possível, sabia que estava só, há muito tempo era assim.
- Uma mensagem do além? Tornou a falar consigo. Mas logo abandonou essas ideias religiosas e inúteis. Havia algo a ser feito; havia tentado outras vezes, mas estava decidido a não protelar dessa vez.
- Para que tanta humilhação, tanta vergonha, tanta impotência? Gritou desvairadamente.
? Não, nenhum ser humano precisa viver refém dessas coisas! Esbravejou uma segunda vez.
Nessa noite, definitivamente, libertar-se-ia. Se libertar do que, não sabia ao certo, mas imaginava que fosse do mal, do medo, do fracasso, da solidão. Isso era bem mais do que o suficiente. O amargo e melancólico sorriso voltou ao seu semblante.
Balançou, ficou muito assustado, não com o que estava prestes a fazer, mas com uma risada que rasgou a fria noite próxima ao cais. Teria mesmo ouvido alguma coisa? Talvez não, desde que lera alguns filósofos decidira tornar-se racionalista.
? Sou mesmo um ridículo! Um louco! Como posso me assustar comigo mesmo? Não posso esquecer de minha formação racionalista. Voltou a sorrir, mas dessa vez não havia amargura nem melancolia, afinal de contas a sua condição de homem racional havia retomado o controle de tudo novamente... Começou a delirar.
Nesse momento começou a cantarolar uma música que nunca tinha ouvido. A mureta da ponte balançou, talvez tenha sido ele mesmo, ia perdendo o equilíbrio, mas recompôs-se. Ao longo dos anos ansiara demais por esse momento, não seria de qualquer maneira que iria partir. Ele, e não o acaso ou uma fatalidade qualquer, seria o maestro e regente da circunstância. Essa glória lhe pertencia, era só dele, de mais ninguém.
Tentou pensar nas poucas coisas boas que fizeram para ele ou nas que ele tinha feito para alguém. Não logrou êxito. Sentiu-se mal por isso, mais um fracasso. Era bom nessas coisas. Tentou inverter a ordem, quantas coisas ruins haviam feito com ele desde a infância? Nesse momento uma enxurrada de péssimas lembranças o abraçou e o puxou para baixo. Seu corpo tremia, mas resistia. Um calafrio percorria-lhe a alma: seria o medo da morte, ou o medo da vida? Não sabia a resposta, dessa vez, a confusão reinante o fragilizou sobre maneira, começou a chorar...
Em alta velocidade, como se estivesse fugindo do próprio inferno, um carro passou pela ponte. No seu interior estava um homem de meia idade. Olhando pelo retrovisor, o condutor do veículo procurava confirmar aquilo que achava que seus olhos haviam lhe mostrado. Freou bruscamente o automóvel, abriu a porta e correu para o centro da ponte, por onde acabara de passar. Sabia que era uma pessoa mesquinha, egoísta e covarde, mas ali estava sua chance, pagaria todas as suas dívidas com o criador, salvaria uma vida, impediria que um filho de Deus pusesse fim a sua vida. Correu o mais que pode, não podia perder tempo. Pensou na infância, sempre que ia tomar banho amarrava as pontas da toalha no pescoço, abria bem os braços e tentava voar. Voou muitas vezes, combateu o mal, fez o bem. Mas isso foi há muito tempo. Quem o conheceu naquela época nunca iria imaginar que quando adulto ele faria o que fez. Estava em liberdade provisória há pouco mais de um mês. Pagara todas as suas dívidas com os homens, mas agora eis a sua grande chance, sua definitiva remissão, iria também ficar quite com a divindade.
Estacou no centro da ponte, estava confuso, não havia mais ninguém na ponte, só ele.
Mas como isso é possível? Fora exatamente ali que ele viu aquele vulto humano. Teria o homem se jogado da ponte? Pensou, sem conseguir esconder seu desespero pessoal.
O intervalo de tempo em que passou com o carro, deixou o volante e chegou até ali, teria sido tempo demais? Ele não poderia ter esperado um pouco mais? Em questão de segundos todos esses pensamentos lhe passaram pela mente. Aflito, correu para o para peito da ponte e olhou para baixo, nada. Só enxergava escuridão e ouvia o suave e distante barulho da água que escorria.
Naquele momento soube que havia perdido uma titânica batalha da vida contra a morte. Quem teria vencido? Sentou-se no meio fio e ficou olhando ao longe. Uma figura disforme sumia noite à dentro.
- Teria sido o ser que vim salvar ou um transeunte qualquer que buscava proteção do frio da madrugada? Indagou impotente.
Pensou em levantar e correr mais um pouco, tentar alcançar o vulto que acabara de sumir. Mas estava cansado, muito cansado, cansado demais... Cansado da vida!
Jamais saberia a resposta. Sentiu ódio. Permaneceria culpado.
- Algum dia, em algum lugar haverá para mim salvação? Pensou em voz alta. O gato do terreno baldio que havia ficado em silêncio por um longo período, pulou o muro e pôs-se a caminha despreocupadamente pela fria madrugada.
Era madrugada de domingo, não demoraria muito e a alvorada iria começar sua batalha diária com a penumbra da noite. Pôs-se de pé, o quase salvador resolveu voltar para seu carro, era a única coisa a fazer nesse momento. Fez um esforço para olhar para frente, ergueu a cabeça, internamente acabara de tomar uma decisão: à noite iria procurar uma igreja! Cacau ":¬)