RELATOS DE UM PROFESSOR ESGOTADO (CRÔNICA IIIa)
Sociologia

RELATOS DE UM PROFESSOR ESGOTADO (CRÔNICA IIIa)


José Pastre nos brinda com a sua terceira crônica: "Memória de um sofá I". Desta vez, teremos de aguardar em suspense a continuidade dessa história, ou, como nos sugere Walter Benjamin, podemos nos aventurar a participar da narrativa, criando outros enredos, outras possibilidades para Zenão.

Memória de um sofá I: O fato é que iam para a escola, e iam pelos mais diversos motivos. E ali se encontravam. E tantas coisas aconteciam. Algumas com roteiro já traçado, com o ritmo já estabelecido. Outras imprevistas, inesperadas. Às vezes, quando sentava-se no sofá da sala dos professores, vinha à cabeça de Zenão um conjunto de cenas que ele e seus colegas viviam no dia-a-dia: levantar, ir para a escola, encontrar os colegas professores, assinar o livro ponto, pegar o material, ir para as salas, encontrar os alunos, fazer a chamada, pedir silêncio e atenção, e assim ia o traçado da linha... E Zenão se perguntava se ao repetir aqueles mesmos passos em direção à escola, ao subir aqueles mesmos degraus em direção às salas, repetir os mesmos ritos da profissão, ler os mesmos textos ? os mesmos textos? ?, ao fazer tudo isso, ele o fazia como Sísifo ou como Proteu? Ou seja, em meio a toda aquela repetição, o trabalho estava condenado ao fracasso? Era uma espécie de danação, à qual todos estavam submetidos, estavam presos? Ou alguma coisa se transformava, alguma coisa se modificava em meio ao que se repetia? Toda aquela repetição era capaz de produzir alguma diferença, fazer diferença na vida dele e das outras pessoas?
Em meio a essas cenas, em meio a essas perguntas, Zenão não deixava de contemplar as pessoas que passavam à sua frente, as coisas que estavam à sua volta. Mas era envolvido por uma espécie de murmúrio, em que se misturavam as vozes das pessoas, os sons de seus corpos em contato com as coisas e outros ruídos da escola, com as cenas que passavam pela sua cabeça. Numa dessas vezes em que contemplava as pessoas, quando distraidamente virou a cabeça para o lado, notou que havia no canto da sala, onde estava o sofá, meio escondido dos olhares das pessoas que circulavam naquele espaço ? inclusive de Dona Cida, a senhora que fazia a limpeza da sala ?, uma pequena teia de aranha sendo construída. Zenão passou, então, a contemplar o trabalho daquela aranha, estendendo as linhas, tecendo sua teia, até que foi bruscamente interrompido: ?Aí, Zenão, pensando na ?morte da bezerra??? ? Era Carol, a professora de Educação Artística. ?Não, estou contemplando a aranha tecendo sua teia?! Uma interrogação caiu na cabeça da Carol, mas Zenão não explicou nada! Ambos riram! Foi quando Zenão se deu conta de que havia dado o sinal para o intervalo e todos os professores estavam entrando na sala. ?Quer ver umas fotos que tirei para uma amiga??, perguntou Carol. ?É claro?, respondeu de imediato Zenão, pois ele adorava ver as fotos tiradas pela Carol. Ela tinha um olhar artístico, não por ser uma professora de Educação Artística, mas era uma característica de seu olhar, uma espécie de dom que ela desenvolvera, um modo de olhar as coisas e as pessoas e captar algo de surpreendente, ou algo de intolerável, naquilo que o nosso olhar preguiçoso, ou cansado, se habituou, naturalizou. Outros colegas também haviam desenvolvido este dom, este modo de olhar. Foi o caso de Ana, a professora de Biologia. (continua...)



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